Rui de Freitas, o
guru de várias gerações
Todas as quartas-feiras, no CIEP Nação Rubro-Negra, na Gávea,
ex-jogadores de basquetebol se encontram e jogam animadas peladas. Lá encontrei
Gedeão, Ardelim (ex-Botafogo), Marcelo Cocada (ex-Flamengo e Fluminense),
Rogério “Touro” (ex-Botafogo) e muitos outros.
O grupo é organizado e as peladas são divididas por faixas etárias.
Soube que o líder é o Paulista, ex-Vasco, e seleção brasileira. Mas, confesso que dessa vez não fui
para assistir as peladas e rever essa turma que trouxe a minha lembrança os
bons tempos das transmissões pelas ondas da Emissora continental, 100%
esportiva, ao lado do saudoso e querido amigo Noli Coutinho, lá pelos ídos dos
anos 60.
Fui ao encontro do guru desses
jovens veteranos, segundo eles próprios. Sentado me aguardando estava um jovem
de 85 anos, que antes de conversar comigo, foi jogar sua sagrada pelada.
Depois, então, tive a alegria de ouvir Rui de Freitas, no dia 20 de fevereiro
de 2002:
“Em Pernambuco, onde eu vivi grande parte da minha infância eu jogava
futebol. Nasci no Rio, mas, meu pai foi ser Chefe de Polícia, em Recife, e eu
tive que acompanhá-lo. Quando retornamos ao Rio, em 1930, fomos morar, no
Riachuelo, e lá jogava futebol em times organizados, que participavam de
festivais aos domingos. Comecei a jogar basquete, nessa época, com 14 anos, na
Associação Cristã de Moços, na Rua Araújo de Porto Alegre.
Meu pai foi preso por questões políticas, conseguiu escapulir e minha
família foi para o Uruguai. Em 1932, fui campeão da 3a divisão,
jogando no Biguá. No início de 1936, voltamos para o Rio e fomos, novamente,
morar no Riachuelo. Quando o time foi formado para disputar o campeonato, eu já
entrei como titular. De 36 a 41, sempre disputamos o título. Fomos
vice-campeões, em 36, numa melhor de três com o Grajaú; em 37 e 38 conquistamos
o bi; em 39 o Botafogo foi campeão; e em 40/41 novamente fomos bicampeões.
Nosso time base em 36/37 era: Adílio, Sebastião, Jorge, Camilo e eu.
Fiquei no Riachuelo até 1942. Saí porque um dia veio uma nova
diretoria, que expulsou um cara que fez umas trapalhadas. A turma do basquete,
que tinha um prestígio grande, apoiou a diretoria. Dois dias depois o filho do
presidente fez também uma trapalhada, mas não o colocaram para fora. Aí, eu
disse: se ele não sair, saio eu. Como o presidente ajudava o clube com
dinheiro, nada aconteceu e eu saí. Fui para o América, onde fiquei dois anos.
Nosso time era: Marinho, Helinho, Passarinho, Jagunço, Geraldo, eu e outros.
Jogamos mano a mano com as outras equipes, mas não conquistamos títulos”.
O jogo entre Associação Atlética Grajáú e Flamengo praticamente decidiu
o título carioca de 1950. O Flamengo tentava o tricampeonato e perdeu para
Associação Atlética Grajaú. Rui importante personagem desse momento histórico, nos
contou como foi a partida:
“Em 1950, a Associação Atlética Grajaú montou o time com alguns
jogadores do América e mais Montanha e Cleto, que veio do Riachuelo. A partir
de 48, o Flamengo passou a dominar o basquete carioca, até então sob a
liderança do Botafogo. O Flamengo foi bicampeão em 48/49.
Na decisão de 50, o jogo foi o tempo todo mano a mano, até o Cleto
fazer a cesta decisiva. Naquele tempo os resultados eram muito mais baixos.
Primeiro porque se jogava pouco na cesta e, também, não tinha tempo. O sujeito
ficava com a bola na mão e só jogava na certa.
Nós naquele jogo fizemos o que o Simões me ensinou: quando a bola saía,
o cronômetro não parava; nós estávamos atrás, então nós colocávamos um
companheiro para entrar e o que saía voltava imediatamente; com isso o tempo
corria muito pouco; quando nós passamos no marcador paramos de fazer isso, para
o tempo passar e acabamos vencendo o jogo. O Simões era craque, jogava no
Tijuca e era muito meu amigo.
O time do Flamengo era muito bom. Jogavam Algodão, Godinho, Fernando,
Tião, Alfredo. O técnico era o Kanela”.
Na história do basquetebol brasileiro um dos mais gloriosos episódios
foi a conquista do bronze, nas Olimpíadas de Londres, em 1948:
“Foi um exemplo de como o esporte em geral, no Brasil, não é bem
tratado. Tivemos que levar goiabada e outros alimentos. Não tínhamos médico,
massagista. Era um médico para toda a delegação, só queria saber das meninas da
natação. Num jogo em que o Alfredo se machucou, ele apareceu e quando foi
atender o Alfredo, o Reis Carneiro, Presidente da CBB disse: “Tira a mão daí.
Não mexe no meu jogador. Não venha agora para cá”.
Nós podíamos levar 12 jogadores e levamos só 10. Tivemos a contusão do
Évora, um companheiro amarelou, não digo o nome, e o Daiuto, que era o técnico,
não tinha confiança em três jogadores.
Quando chegou a partida contra a Inglaterra, que era a seleção mais
fraca, alguém da chefia da delegação disse que era importante o saldo de
cestas. Corremos muito e fizemos 72 pontos. No jogo seguinte, cansados, sem
massagista, sem médico, não ganhamos. Para ganharmos depois do México foi um
custo. O time base era: Algodão, Brás, Massene, Alfredo e eu. De São Paulo
tinham quatro e o resto era do Rio.
A medalha de bronze valeu como se fosse de ouro. Mas, quando eu entrei
em Wembley, no desfile inaugural, vendo todo aquele cenário, eu disse para mim
mesmo: não preciso ganhar, já estou satisfeito”.
Quatro anos depois, em Helsinki, na Finlândia, Rui de Freitas defendia,
novamente, as cores brasileiras, como atleta olímpico:
“O espírito não era o mesmo de 48. Por exemplo, foi o time do Flamengo.
O técnico foi o Pitanga, que era na minha opinião o que mais entendia de
basquete. Ele dizia tira aquela cadeira dali e não tiravam a cadeira. Como ele
não queria briga, ninguém o atendia.
A turma do Flamengo passou a dominar. Jogava o time do Flamengo que não
era grande coisa. O Flamengo jogava muito com o Kanela mandando. Kanela tinha
algumas coisas muito boas, mais ganhava fazendo outras coisas que não deveria
fazer. O Zé Luís, de Minas Gerais, entrou muito bem e a turma do Flamengo
começou a pressionar.
Um dia no vestiário quase o pau
come. Aí o Mário Pereira, que era dirigente da delegação do Brasil, prendeu o
Zé Luís no alojamento. Quando Reis Carneiro, que era um homem firme, soube
suspendeu a proibição imposta ao Zé Luís. Nosso rendimento podia ter sido
melhor se não fosse a desunião e a omissão do Pitanga diante de determinados
fatos”.
A partir da perda do tricampeonato, em 50, o Flamengo tomou conta do
basquete carioca, chegando ao decacampeonato em 1960. Rui explicou as razões
desse domínio rubro-negro:
“Acontece que o Flamengo era um time muito bom e se reforçando com
jogadores de outros clubes enfraqueceu os adversários. Algodão veio do Aliados,
Alfredo, do Vasco, Mário Hermes, de Niterói e outros.
O time de A.A. Grajaú, ainda, disputou mais um ano e se desfez. Depois
das Olimpíadas de 52 eu parei e fui ser técnico do Sírio e Libanês. No Sírio,
jogavam Ardelim, Gedeão, Roberto.
Na histórica partida de 55, além da sorte do Flamengo, nós desconfiamos
que o cronômetro não correu. Faltavam 7 segundos, o Sírio tinha dois lances
livres e o Olivieri perdeu os dois; o Algodão pegou a bola, jogou para o
Alfredo no meio da quadra; o Alfredo pegou a bola, bateu devagar, atravessou a
quadra, balançou o corpo e deu para o Arthur, que enganchou; a bola não entrou,
veio o Guguta, deu um tapa e fez a cesta. Tudo isso faltando 7 segundos. Até
hoje fica a interrogação: parou ou não o cronômetro?”
Togo Renan Soares, o Kanela, foi um personagem altamente polêmico no
mundo do basquetebol. Algumas pessoas afirmam, que o basquetebol tem um divisor
d’água : “antes e depois do Kanela”. Rui deu sua opinião:
“O Kanela teve sua influência, mas não essa influência toda. Kanela
tinha uma coisa de bom: ele tratava seus jogadores a pão-de-ló. Procurava
resolver qualquer problema. Mas, também, obteve muitas vitórias com ações não
muito legais. Ele desmanchou o basquetebol carioca,
com o Flamengo ganhando tudo sempre. Desestimulou os adversários e, também, os
juízes sempre tinham medo do Kanela, porque ele era bravo.
Taticamente, ficou a mesma coisa. Contra ataque sempre houve. Só que o
Kanela gostava muito do contra ataque. Ele gostava da correria e tinha o Mário
Hermes, cuja altura ninguém tinha naquela época. Além disso, a turma do
Flamengo jogava bem”.
Com 85 anos, ainda, jogando com os seus companheiros, Rui de Freitas,
elegeu os grandes nomes do basquete brasileiro em todos os tempos:
“Celso Meier, o General, que jogava no Tijuca; Simões, o Coronel,
também, do Tijuca; Guilherme, do Botafogo; Wlamir, Pecente e Amauri. Quanto ao
Algodão era muito útil a equipe, marcava bem, mas não era um craque.
Com relação aos técnicos destaco o Pitanga, que conversava muito comigo
e era professor da Universidade do Brasil. Ele entendia mesmo do negócio.
A maior vitória do Brasil em todos os tempos foi o título do pan-americano,
com Oscar, Marcel e outros, porque batemos o time norte-americano, com
jogadores da NBA. Começamos com o “tiro ao pombo”, isto é, mandamos bola para o
alto e acertamos todas.
Foi uma vitória fantástica.
Então, passaram a acreditar que jogar a bola para o alto era o certo. Com isso
o Brasil não ganha uma desde quando? O Oscar, que tem a mão fantástica, está no
Flamengo que chegou em 7o lugar, no ano passado. Arremessam quando
devem e quando não devem arremessar. Podem ganhar de um grande time, como podem
perder de uma equipe inferior, como aconteceu no próprio pan-americano contra o
México”.
Rui de Freitas encerrou a entrevista afirmando:
“Meu melhor momento foi a conquista da medalha de bronze, na Olimpíada
de Londres. Com todas as dificuldades chegamos ao pódio.
Nunca tive uma grande decepção. Para os jogadores de hoje digo que eles
devem ter mais calma. O esporte é uma brincadeira. Tenho visto violência dentro
e fora da quadra. Perder e ganhar é do esporte, não levem isso a ponta de
faca”.
Nascido em 24 de agosto de 1916, Ruy de Freitas completaria este ano
102 anos.
F 01 – Quinteto titular do Riachuelo, campeão
carioca de 1937: Adílio, Sebastião, Tripinha, Luiz e Ruy.
F 02 – Ruy,
terceiro agachado a partir da esquerda, na seleção carioca campeã brasileira.
F 03 – Em
1942, Ruy defendeu a equipe de voleibol do Fluminense. Vemos a partir da
esquerda, Pacheco, Porto, Peter, Jonas, Marcondes, Ruy de Freitas e Afonso.
F 04 – Ruy na
partida entre Associação Atlética Grajaú e o Halem Globetroters, em 1951.
F 05 –
Domingos Araújo, locutor esportivo da Emissora Continental, acompanha a
entrevista dos
F 06 –
Entrevista de Ruy de Freitas à Revista do Esporte.
F 02
F 03
F 04
F 05
F 06