O pênalti de Domingos em Piola - III a -
Como vimos, o futebol brasileiro fracassou nas duas primeiras Copas do Mundo.
No Uruguai, em 1930, o Brasil não se fez representar com a sua melhor seleção.
A briga entre os dirigentes do Rio e de São Paulo tirou os jogadores paulistas
do mundial. Não havia na Comissão Técnica nenhum representante de São Paulo, gerando
o descontentamento. Araken Patuska, que estava sem clube, foi o único paulista
na seleção.
Quatro anos depois, as divergências continuavam a prejudicar o futebol
brasileiro. Agora, era a briga entre a CBD, entidade de clubes amadores, e a
FBF, cujos filiados eram clubes profissionais. As agremiações da Federação
Brasileira de Futebol se negaram a ceder seus jogadores. Por interferência de
Carlito Rocha, alguns profissionais concordaram em participar da seleção, como
foi o caso de Leônidas da Silva.
Classificado nas eliminatórias com a desistência do Peru, o Brasil
disputou as oitavas de final em jogo único, sendo eliminado pela Espanha ao ser
derrotado por 3 a 1.
Na III Copa do Mundo, disputada na França, pela primeira vez o futebol
brasileiro estava representado pelos seus melhores jogadores. A estreia foi
contra a Polônia. No tempo normal houve o empate de 4 a 4 e na prorrogação
conseguimos chegar a vitória por 6 a 5. Depois enfrentamos duas vezes a
Tchecoslováquia. O empate de 1 a 1 foi o resultado da primeira partida e no
jogo desempate ganhamos por 2 a 1 e nos classificamos para as semifinais. O
adversário era a poderosa campeã do mundo, a Itália.
Mesmo sem Leônidas, seguramos o empate de 0 a 0 no primeiro tempo. Num
contraataque italiano aos 11 minutos do segundo tempo, Colaussi abriu a
contagem. O lance decisivo da partida aconteceu quatro minutos depois. O
árbitro suíço M. Wutrich marcou pênalti de Domingos da Guia em Piola, fato que
dificultou a reação brasileira para superar a vantagem adversária.
Os jornais que cobriam o mundial publicaram várias matérias sobre o tão
discutido lance com destaque para a imprensa francesa. O jornalista francês
A.Chantrel, no jornal “Sporting”, de Paris, escreveu:
“Em Marselha, os brasileiros realizaram uma péssima partida. Romeu,
Luizinho e Perácio, sucessivamente, tentaram substituir Leônidas, no centro da
linha avante. Mas foi em vão. A turma brasileira desarticulada, fatigada, foi
dominada pela Itália. Não obstante a superioridade do adversário, os
brasileiros foram batidos por um pênalti dos mais discutíveis. De fato,
enquanto a bola se encontrava a quarenta metros da linha, Domingos deu um
pontapé em Piola. Este tomba e o juiz, voltando-se, sem hesitação, concede a
penalidade. A meta não estava ameaçada, pois a bola não estava em jogo.
Houve falta é evidente, mas o Sr. Wutrich seria mais inspirado se
fizesse sair Domingos do que oferecer um ponto aos italianos, tanto mais que
ele poderia pensar – e teria acertado – que Domingos não cometeu essa falta de
sangue frio, mas sim em revide a uma provocação. De qualquer modo foi esse o
ponto da vitória e da eliminação dos brasileiros”.
Em outro jornal esportivo, “O Football”, de Paris, o jornalista Gabriel
Hanot expôs a sua opinião:
“Existe uma
só mancha no puro cristal do futebol praticado por Silvio Piola. É uma certa
tendência a dissimulação. Em Marselha, quando recebeu os golpes do grande
Domingos, Piola atirou-se ao solo para obter
um pênalti a favor da sua equipe. O árbitro suíço M. Wutrich ficou, com
efeito, alarmado e concedeu injustamente o pênalti que Meazza transformou em
gol da vitória, enquanto Piola se levantava absolutamente indene!...”.
O grande
Domingos da Guia, autor do pênalti, no livro “O Divino Mestre”, do jornalista
inglês Aidan Hamilton, falou sobre o discutido lance:
“Durante todo
o “match” fui provocado pelo centroavante. Recebera ordens de Pimenta no
sentido de não largar o craque italiano: “Você será a sombra de Piola”. E foi o
que aconteceu. Antecipava-me, com facilidade e, nas bolas altas, procurava
sempre confundi-lo. Lá pelas tantas, Piola perdeu a cabeça e desandou a dizer
palavrões. Explodia: “Você não me larga, não é? Pois vai se arrepender”. Às
ameaças do adversário, todos sorríamos. Até que ele começou, de fato, a distribuir
pontapés. Os palavrões de Piola, que vinham em italiano, eram devidamente
traduzidos e devolvidos.
Aos quinze
minutos da fase complementar, ainda com o Brasil em pleno domínio, a defesa
italiana rechaçou uma bola. Pulamos, eu e Piola. Estávamos no setor esquerdo e
o centroavante, vendo o meia em boa posição, tentou cruzar. Ora, eu vinha
marcando em cima e a cabeçada do adversário saiu defeituosa. O juiz consignou
bola fora. Quando voltava para posição, fui surpreendido com a violência do
rapaz.
Cinicamente,
o italiano atingiu o meu tornozelo. Cego de dor e de ódio, revidei. Foi o
bastante. O árbitro, que não vira o lance anterior, usou o apito. Eis um
momento inesquecível da minha vida. Todos os jogadores do Brasil ficaram
atônitos. Martim, capitão da equipe, foi falar com o juiz. Esse respondeu no
seu idioma. Alucinado, o centromédio perguntou: “O senhor é ladrão?”. O juiz
confirmou, acenando. Com o mal consumado, nasceram alguns protestos dos
dirigentes. Mas já não mais seria possível remediar a situação. A bola foi
colocada na marca de cal e o placar modificado”.
Romeu, ainda, fez o gol de honra brasileiro aos 41 minutos. A seleção
terminou a Copa com uma bela vitória diante da Suécia por 4 a 2, em disputa do
3o lugar.
O pênalti de Domingos em Piola aconteceu no dia 16 de junho de 1938 e
faz parte dos inúmeros lances polêmicos que enriquecem a história do fascinante
mundo do futebol.
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